Com a série de manifestações que aconteceram no Brasil nesses últimos dias e que continuam a acontecer em vários estados, mas agora em uma frequência e quantidade bem menores, voltarei a postar no blog. Confesso que senti falta de comentar, criticar, analisar... Escrever, mas o momento do país é tão único e se desenrola de maneira tão magnífica que foi (e ainda o é) impossível não ficar concentrado nos jornais que falavam sobre as manifestações ou ir à rua para ter a sensação de lutar por algo crível. Provavelmente a onda de protestos ainda durará por um tempo, e daqui a alguns dias ou semanas, farei uma postagem sobre um dos maiores movimentos que a nação já observou. Amanhã, vamos de poesia. :)
Vanessa Magalhães no maior protesto em Fortaleza que reuniu mais de 80 mil pessoas, o "+ pão, - circo, copa para quem?" em 19/06/13 próximo à Arena Castelão.
Uma das grandes duplas que rechearam o movimento nacional conhecido como Bossa Nova, sem dúvidas, foi Vinícius de Moraes e Baden Powell; Vinícius com sua poesia, Baden com seu violão. Parceiros de um dos álbuns mais consagrados da Música Popular Brasileira, o "Os Afro-Sambas", onde "Canto de Ossanha" e "Canto de Xangô" se destacam como verdadeiros hinos da cultura negra, Vinícius e Baden gravaram uma das maiores obras-primas brasileiras: "Apelo".
"Apelo" tem sua melhor gravação em um álbum de 1971 onde Vinícius, Toquinho e Maria Bethânia se apresentaram em uma das boates mais famosas de Buenos Aires: a La Fusa. O local serviu de palco para outras gravações de Vinícius e era praticamente a segunda casa do poeta. O disco do trio ainda conta com tantas outras canções conhecidíssimas como "A Tonga da Mironga do Kabuletê" e "Como Dizia o Poeta".
A música reflete o estado de um homem que, por algum motivo (provavelmente traição), foi deixado pela mulher amada, e implora para que ela volte para o seu cotidiano, para a sua vida, para o seu amor, esse é o grande apelo tratado. Cortada pelo "Soneto de Separação" de autoria do próprio compositor, o que só acrescenta ao som uma característica mais poética, a canção se torna sentimento a cada palavra dedilhada pelo trio e insere o ouvinte em uma realidade pós-rompimento tão dolorosa que se torna difícil de explicar.
Ah, meu amor, não vás embora
Vê a vida como chora, vê que triste esta canção.
Não, eu te peço não te ausentes,
Pois a dor que agora sentes só se esquece no perdão.
A primeira estrofe inicia o apelo do eu-lírico e sugere que a amada ainda está presente, no momento, ele não quer que ela vá embora; Vinícius, além de se usar de personificação (a vida chora) e admitir que a intenção da canção feita é ser triste, afirma com toda a certeza que a dor causada por ele só será esquecida caso seja perdoado por seu amor.
Ah, minha amada, me perdoa
Pois embora ainda te doa a tristeza que causei. Eu te suplico não destruas
Tantas coisas que são tuas por um mal que já paguei.
Na segunda estrofe o pedido por perdão continua a mover o poeta, a palavra "súplica" o transporta para um estado demasiado inferior. Apesar de saber que a tristeza ainda provoca muita dor na amada, o eu-lírico afirma que o que foi feito, foi pago, e que mesmo em estado de destruição, ainda continua sendo dela.
Ah, minha amada se soubesses
Da tristeza que há nas preces que a chorar te faço eu,
Se tu soubesse num momento
Todo o arrependimento, como tudo entristeceu,
Se tu soubesses como é triste
Eu saber que tu partiste sem sequer dizer adeus,
Ah, meu amor, tu voltarias
E de novo cairias a chorar nos braços meus.
A partir da terceira estrofe, Vinícius inicia uma oração condicional que só terminará no fim da quarta. A intenção agora, é supor como a amada se sentiria caso soubesse o que ele está sentindo, que há tristeza nas preces rogadas e regadas à lágrimas realizadas, que o seu arrependimento é tão grande que chega a entristecer o mundo, e como é ruim saber que ela havia partido sem se despedir. O eu-lírico afirma no fim que se ela soubesse e sentisse isso tudo, com certeza voltaria para os braços que por tanto tempo receberam o choro e o desespero dela.
Com o término da quarta estrofe, na versão de 1971, o poeta declama um dos seus poemas mais famosos, o "Soneto de Separação", que cai como uma luva e embeleza mais ainda a clássica canção. O soneto, através de antíteses, relaciona os sentimentos de um casal enquanto estão juntos e após o término do romance; o que era riso, abruptamente, se torna pranto, por exemplo.
De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.
De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama,
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama.
De repente não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente.
Fez-se do amigo próximo o distante,
Fez-se da vida uma aventura errante,
De repente não mais que de repente.
"Apelo" é, na minha humilde opinião, um dos grandes feitos da dupla Vinícius de Moraes e Baden Powell, da Bossa Nova, e da Música Popular Brasileira; essa versão com o "Soneto de Separação" transporta o ouvinte para a realidade do eu-lírico e o perdoa sem hesitação alguma. A música tem tanta força que pode fazer qualquer pessoa que passa pela mesma situação cair aos prantos ao escutá-la, Vinícius é mestre nisso: em expressar nosso sentimento mais íntimo através de palavras tão belas. Obrigado, Capitão do Mato, poetinha, meu mestre, Vinícius de Moraes.
Luto, dor, desespero: os três primeiros capítulos de um dos filmes mais polêmicos de Lars Von Trier, Anticristo (Antichrist, 2009), apresentado no festival de Cannes e divisor de tantas opiniões. Vaiada e aplaudida em sua primeira exibição, a obra cinematográfica, repleta de simbolismos, discorre sobre Femicídio, a realização do prazer em detrimento da "obrigação" maternal e critica o famoso passado da Igreja Católica. Baseado nos ideais do livro de Friedrich Nietzche com referências à Bíblia Sagrada, o roteiro foi escrito em um dos seus momentos de depressão, onde estava caindo em um imenso abismo, o que confere ao filme uma personalidade extremamente pessimista.
Anticristo é dividido em seis partes (Prólogo, Luto, Dor, Desespero, Os Três Mendigos e Epílogo) e narra a história de um casal em luto pelo filho que havia se jogado de uma janela enquanto praticavam relação sexual, fato que desestrutura a esposa (Charlotte Gainsbourg) e a faz querer se isolar do mundo, em uma cabana chamada de "Éden", junto do marido e analista (William Dafoe). A relação entre eles é fria, pautada em sexo, eles não se conhecem, ela é a paciente dele, algo meramente profissional, não parecem um casal. A luta entre o prazer e a maternidade é posta em pauta, a loucura da mulher desestruturada chega a ser impactante e a ironia de "ser" um ser humano mais ainda.
A cena inicial já mostra que o diretor dessa vez veio com tudo, pois consegue ser, ao mesmo tempo, bela e angustiante. Em preto e branco e em câmera lenta vemos a dualidade vida/morte, a concepção de um ser (o sexo, na sua essência) e a queda fatal de um outro. Tudo isso ao som de Lascia Ch'io Pianga (Deixe-me Chorar) da ópera Rinaldo de Handel. O prólogo pode ser conferido logo abaixo.
Durante as quatro partes do filme, podemos presenciar a decadência psicológica da mulher e a força racional do homem; o Femicídio é duramente criticado e, por tabela, a igreja também o é. A natureza é tratada como um personagem antagônico, o vento é a respiração do demônio. Em uma cena, no mínimo cômica, onde uma raposa fala para o homem: "O Caos Reina", prefiro acreditar que o intuito do diretor era equiparar o homem à raposa, afinal ambos são animais. O terror psicológico toma conta do ambiente e o sarcasmo, como de praxe, fica exacerbado na tela.
O roteiro é de autoria do próprio Lars Von Trier, o que automaticamente é interessante, e requer muita atenção e reflexão por parte do espectador. As referências à bíblia sagrada são claras e podem ser observadas através da "Árvore da vida" e do "Éden". As críticas ao passado negro da Igreja podem ser verificadas através do tratamento dado à morte de mulheres nos tempos da Inquisição. Apesar de se usar de inúmeros simbolismos, o que torna o filme um pouco inacessível, o dinamarquês novamente acerta ao criar um roteiro diferenciado que para sempre ficará na memória de qualquer pessoa.
Charlotte Gainsbourg, a queridinha do diretor, veio arrebatadora; incrível como ela retrata um personagem tão difícil de forma tão segura e completa, os enquadramentos até chegam a lembrar a imortal Wendy Torrance de "O Iluminado" do incomparável Stanley Kubrick. William Dafoe, de modo soberbo, retrata o racional masculino, o analista introspectivo, e nos dá o que provavelmente é a sua melhor interpretação.
A direção de Lars Von Trier alcança, mais uma vez, a excelência; o prólogo é de um bom gosto artístico descomunal, incrivelmente belo e doloroso; os rostos embaçados conferem aos personagens a solidão; a escuridão conversa com a tão famosa e autoral câmera tremida. O sobrenome do "modesto" dinamarquês deveria ser Inovação, pois, nunca contente com o curso que o cinema toma, sempre tenta fazer algo diferente, que conquiste (ou não) o espectador, mas que deixe registrado o que foi feito, como foi feito e por quem foi feito.
Anticristo é mais uma grande obra de arte intimista e crítica, apesar da sua difícil acessibilidade e da subjetividade com que o sofrimento do diretor tomou, posso afirmar, sim, que mais uma vez Von Trier fez um grande trabalho. O cinema nas mãos dele se torna inesquecível e extremamente artístico, obviamente, ele está se tornando um dos grandes gênios do cinema contemporâneo, e é com ele que a sétima arte me fascina cada vez mais.
Fritz Lang, um dos diretores mais cultuados de todos os tempos, baseado nos dogmas do Expressionismo Alemão, impressiona qualquer amante da sétima arte com seu "M - O Vampiro de Düsseldorf (M - Eine Stadt Sucht Einen Mörder, 1931). A linearidade da linguagem alinhada à magistral prática do recente aparecimento do som ajuda a elevar a qualidade da obra audiovisual tendo em vista o ano de produção e os recursos escassos para que ela fosse feita.
Peter Lorre (Hans Beckert) é um assassino em série que, ao sequestrar crianças e fazê-las sumir do mapa, aterroriza a pacata cidade de Düsseldorf na Alemanha. Os seus crimes levam todos da cidade a mudar de hábito: qualquer cidadão acompanhado por com uma criança é o possível assassino; a cidade começa a ser controlada pelo medo; a polícia aumenta o número de batidas em casas e estabelecimentos; alguns negociantes, com medo de serem presos por seus negócios ilegais (pelo aumento da fiscalização policial), contratam mendigos para observarem as ruas da cidade; tudo gira em torno da busca pelo serial killer.
O roteiro de Fritz Lang foi baseado em um artigo policial sobre o assassino em série Peter Kuerten que aterrorizou a Alemanha, em especial a mesma cidade de Düsseldorf no início dos anos 1920, ao realizar roubos, estupros e homicídios. A linearidade do roteiro é algo impressionante, pois a sequência temporal dada pelo diretor em uma época tão remota para o cinema transcende o tempo. A utilização de flashbacks, algo novo e inimaginável para o ano de produção, também é fantástica. Tudo isso acompanhado de críticas sociais que até hoje são cabíveis, como por exemplo, o abuso policial junto aos cidadãos, a diferença de classes entre os negociantes e os mendigos reiterada pelo acordo entre eles, assim como a ironia do julgamento prévio das pessoas que, ainda que coniventes com outros crimes, criticam outros atos tidos como "piores".
Outro atrativo do filme é a presença do som, ferramenta inserida nas produções norte-americanas, tendo sua origem no filme "O Cantor de Jazz" de 1927. "M" foi o primeiro filme alemão a usá-la e a faz funcionar como instrumento coesivo da narrativa, auxiliando no suspense provocado pelas cenas e levando o espectador a criar uma espécie de tensão. O assobio do assassino é a grande dádiva sonora de Lang.
A direção do austríaco convence desde o início, apesar de o som ser alto em demasia (o que revela a falta de experiência no manuseio do equipamento), o famoso jogo de claro/escuro tão recorrente nas obras expressionistas, as sombras que imprimem um enaltecimento do suspense, a excelente edição (com destaque para a que paraleliza duas cenas distintas), e a belíssima visão panorâmica nos minutos finais corroboram para imortalizar o filme.
No mais, Fritz Lang conseguiu fazer algo além de seu tempo, atemporal até, uma obra que reafirma a capacidade criativa do diretor e complementa a qualidade da década de trinta. "M" ficará por tantos e tantos anos como modelo para as produções de arte do cinema mundial, e a sua escola, o Expressionismo, de fato, continuará a influenciar tantas outras produções dignas de ser cultuadas pelos amantes de uma boa narrativa.