Uma das grandes duplas que rechearam o movimento nacional conhecido como Bossa Nova, sem dúvidas, foi Vinícius de Moraes e Baden Powell; Vinícius com sua poesia, Baden com seu violão. Parceiros de um dos álbuns mais consagrados da Música Popular Brasileira, o "Os Afro-Sambas", onde "Canto de Ossanha" e "Canto de Xangô" se destacam como verdadeiros hinos da cultura negra, Vinícius e Baden gravaram uma das maiores obras-primas brasileiras: "Apelo".
"Apelo" tem sua melhor gravação em um álbum de 1971 onde Vinícius, Toquinho e Maria Bethânia se apresentaram em uma das boates mais famosas de Buenos Aires: a La Fusa. O local serviu de palco para outras gravações de Vinícius e era praticamente a segunda casa do poeta. O disco do trio ainda conta com tantas outras canções conhecidíssimas como "A Tonga da Mironga do Kabuletê" e "Como Dizia o Poeta".
A música reflete o estado de um homem que, por algum motivo (provavelmente traição), foi deixado pela mulher amada, e implora para que ela volte para o seu cotidiano, para a sua vida, para o seu amor, esse é o grande apelo tratado. Cortada pelo "Soneto de Separação" de autoria do próprio compositor, o que só acrescenta ao som uma característica mais poética, a canção se torna sentimento a cada palavra dedilhada pelo trio e insere o ouvinte em uma realidade pós-rompimento tão dolorosa que se torna difícil de explicar.
Ah, meu amor, não vás embora
Vê a vida como chora, vê que triste esta canção.
Não, eu te peço não te ausentes,
Pois a dor que agora sentes só se esquece no perdão.
A primeira estrofe inicia o apelo do eu-lírico e sugere que a amada ainda está presente, no momento, ele não quer que ela vá embora; Vinícius, além de se usar de personificação (a vida chora) e admitir que a intenção da canção feita é ser triste, afirma com toda a certeza que a dor causada por ele só será esquecida caso seja perdoado por seu amor.
Ah, minha amada, me perdoa
Pois embora ainda te doa a tristeza que causei.
Eu te suplico não destruas
Eu te suplico não destruas
Tantas coisas que são tuas por um mal que já paguei.
Na segunda estrofe o pedido por perdão continua a mover o poeta, a palavra "súplica" o transporta para um estado demasiado inferior. Apesar de saber que a tristeza ainda provoca muita dor na amada, o eu-lírico afirma que o que foi feito, foi pago, e que mesmo em estado de destruição, ainda continua sendo dela.
Ah, minha amada se soubesses
Da tristeza que há nas preces que a chorar te faço eu,
Se tu soubesse num momento
Todo o arrependimento, como tudo entristeceu,
Se tu soubesses como é triste
Eu saber que tu partiste sem sequer dizer adeus,
Ah, meu amor, tu voltarias
E de novo cairias a chorar nos braços meus.
A partir da terceira estrofe, Vinícius inicia uma oração condicional que só terminará no fim da quarta. A intenção agora, é supor como a amada se sentiria caso soubesse o que ele está sentindo, que há tristeza nas preces rogadas e regadas à lágrimas realizadas, que o seu arrependimento é tão grande que chega a entristecer o mundo, e como é ruim saber que ela havia partido sem se despedir. O eu-lírico afirma no fim que se ela soubesse e sentisse isso tudo, com certeza voltaria para os braços que por tanto tempo receberam o choro e o desespero dela.
Com o término da quarta estrofe, na versão de 1971, o poeta declama um dos seus poemas mais famosos, o "Soneto de Separação", que cai como uma luva e embeleza mais ainda a clássica canção. O soneto, através de antíteses, relaciona os sentimentos de um casal enquanto estão juntos e após o término do romance; o que era riso, abruptamente, se torna pranto, por exemplo.
De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.
De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama,
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama.
De repente não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente.
Fez-se do amigo próximo o distante,
Fez-se da vida uma aventura errante,
De repente não mais que de repente.
"Apelo" é, na minha humilde opinião, um dos grandes feitos da dupla Vinícius de Moraes e Baden Powell, da Bossa Nova, e da Música Popular Brasileira; essa versão com o "Soneto de Separação" transporta o ouvinte para a realidade do eu-lírico e o perdoa sem hesitação alguma. A música tem tanta força que pode fazer qualquer pessoa que passa pela mesma situação cair aos prantos ao escutá-la, Vinícius é mestre nisso: em expressar nosso sentimento mais íntimo através de palavras tão belas. Obrigado, Capitão do Mato, poetinha, meu mestre, Vinícius de Moraes.
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