Lapa,
Rio de Janeiro, década de 1930. O bairro faz parte do grande Centro da cidade
do Rio; boêmio e marginal é adequado para o surgimento de um personagem que, de
fato, existiu: a Madame Satã. Inspirado no filme homônimo de Cecil B. DeMille
de 1930, João Francisco dos Santos desfilou no bloco de rua Caçador de Veados como um morcego
repleto de lantejoulas, fantasia que lembrava o filme em questão e lhe rendeu o
apelido.
Karim
Aïnouz dirige a obra cinematográfica, também homônima no ano de 2001, que
apresenta a imagem de Madame Satã sem rótulos únicos e sem críticas. O
personagem, repleto de vícios, problemas e verdades absolutas introduz uma
leitura, no mínimo, interessante acerca da sua vida, da sua história e das
problemáticas que o envolveram.
O personagem principal se apresenta como um
anti-herói, característica representada pela boemia inerente à sua vida e às
ações que executa. Homem violento, de grande garbo, que não se cala diante de
injustiças impostas; se intitula malandro, trabalha como cafetão das pessoas
que mantém em sua casa e se aproveita de outras financeiramente; é condenado
por homicídio, e retorna à prisão várias vezes por desacato à autoridade.
Já
no início do filme, enquanto seu retrato é destrinchado na prisão, pode-se
ouvir a construção de um discurso que pauta o caráter do personagem principal na
adesão a aspectos boêmios, como o seu vício no álcool, no fumo e no jogo. Características
que, alinhadas a tantas outras, são suficientes para subjugá-lo como uma pessoa
atroz e que, de modo correto, está sendo preso pela polícia. Para os policiais,
o próprio local onde João morava era pré-requisito para envolvê-lo nos assuntos
do submundo do crime, o que era demonstrado pelas frequentes “batidas” nos
estabelecimentos do local.
As
amizades que o personagem de Lázaro Ramos possuía também figuravam como
frequentes nas noites da Lapa. Prostitutas, homossexuais, viciados, entre
tantos outros, também são rótulos instituídos pelas autoridades para levar a
crer na negatividade do caráter da Madame Satã. A família que construiu e para
a qual cedeu sua casa para moradia era composta por pessoas que representavam
essas características do “submundo” do Rio de Janeiro, para eles, João se
assemelhava a um Deus, ao patriarca da família, aquele que tudo pode e para
quem tudo se deve.
O
personagem também fazia parte da lógica das classes que até hoje se mostra
presente na sociedade brasileira. Negro, pobre, homossexual, sem religião,
qualquer uma dessas características já seria suficiente para pô-lo em uma
situação de preconceito social, ainda mais unindo-as a uma pessoa só. Apesar de
existir alguns poucos momentos onde esses aspectos são denunciados na tela, o
diretor não foca o filme no preconceito sofrido pelo personagem, mas sim no
psicológico e na superação diante desses fatos, momentos que só acontecem
quando há a interação entre ele e os de classe social mais elevada.
Ainda
em relação às classes sociais, é importante frisar a relação de dominante e
dominado que o personagem principal exercia. Quando no trabalho, local onde
servia aos mais ricos, exercia claramente a figura de dominado, algo
reconhecido através dos abusos que sofria e do pagamento que não recebia. Em
contrapartida, exercia a figura de dominante no seu lar, onde agia como cafetão
dos seus amigos que, por deverem favores a ele, pagavam uma quantia graças aos
seus trabalhos sexuais.
Para
defender-se dos abusos sofridos e da vida que tinha que seguir por não ser
considerado um artista dos palcos (o que não o faz até os minutos finais do
filme), João se utiliza de golpes de capoeira quando em perigo, o que lhe
conferiu oportunidades de emprego de segurança em casas noturnas da Lapa. Além
da defesa física, o protagonista também o faz psicologicamente a fim de
expurgar os problemas que lhe aparecem. A sua frieza perante seus amigos e amantes
caracteriza uma defesa sentimental que se justifica a partir do sofrimento
frequente vivido.
Apesar
de sofrer diferenciação social graças às características citadas acima, não a
aceitava facilmente. João se sentia na obrigação de mostrar aos demais o porquê
de todos serem iguais, independente de cor, classe ou gênero. Queria ser aceito
em qualquer local da cidade do Rio de Janeiro como um cliente normal, que
pagaria por sua conta e teria o direito, por isso, de frequentá-lo ainda que o
local não tivesse gente da sua “estirpe”. Assim, o personagem pode ser
entendido como o defensor da sua classe, alguém que viveu aquela realidade e
que luta por alguma melhoria para seu povo, ainda que seja relativa à imagem
que este representa para os demais.
Com
relação à linguagem utilizada pelo personagem, observa-se a utilização
recorrente da coloquialidade, algo justificado pelo seu analfabetismo e pela
sua posição social diante do local onde vivia. O sexo por muitas vezes era
tratado sem pudores, exemplificando a popularização desses termos em
decorrência da profissão que exercia. No entanto, a adaptação da linguagem
acontecia quando em diálogo com alguém mais instruído ou com quem tentava seduzir,
nessas cenas, o vocabulário se apresentava de modo polido, com palavras
rebuscadas e repletas de lirismo.
Por
fim, é importante salientar que João Francisco dos Santos, a Madame Satã,
figura como uma versão brasileira do clássico personagem que luta pelo “sonho
americano”. Aquele ao qual, tenta alcançá-lo com todas as forças, de todos os
modos, escapando dos infortúnios, saindo dos problemas e enfrentando dificuldades,
mas nunca desistindo daquilo que o faz viver: o sonho de ser artista.
Texto realizado para a disciplina de Cinema Brasileiro do curso de Jornalismo da UFC
Logo abaixo você pode conferir o filme na íntegra que está disponível pelo youtube.
Boa sessão :)
Referências
Cinema Clássico. <http://cinemaclassico.com/index.php?option=com_content&view=article&id= 1646:madame-sata&catid=45:filmes&Itemid=54>.
Acesso em: 15 jun. 2014.
IlhaGrande.Org. <http://www.ilhagrande.org/Madame-Sata>. Acesso em: 15 jun. 2014.
MADAME Satã. Direção: Karim Aïnouz. Roteiro: Karim Aïnouz et al. Rio de Janeiro: VideoFilmes, 2001. 1 DVD (100 min.).