segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Madame Satã, o anti-herói das noites da Lapa


Lapa, Rio de Janeiro, década de 1930. O bairro faz parte do grande Centro da cidade do Rio; boêmio e marginal é adequado para o surgimento de um personagem que, de fato, existiu: a Madame Satã. Inspirado no filme homônimo de Cecil B. DeMille de 1930, João Francisco dos Santos desfilou no bloco de rua Caçador de Veados como um morcego repleto de lantejoulas, fantasia que lembrava o filme em questão e lhe rendeu o apelido.

Karim Aïnouz dirige a obra cinematográfica, também homônima no ano de 2001, que apresenta a imagem de Madame Satã sem rótulos únicos e sem críticas. O personagem, repleto de vícios, problemas e verdades absolutas introduz uma leitura, no mínimo, interessante acerca da sua vida, da sua história e das problemáticas que o envolveram.

O personagem principal se apresenta como um anti-herói, característica representada pela boemia inerente à sua vida e às ações que executa. Homem violento, de grande garbo, que não se cala diante de injustiças impostas; se intitula malandro, trabalha como cafetão das pessoas que mantém em sua casa e se aproveita de outras financeiramente; é condenado por homicídio, e retorna à prisão várias vezes por desacato à autoridade.

Já no início do filme, enquanto seu retrato é destrinchado na prisão, pode-se ouvir a construção de um discurso que pauta o caráter do personagem principal na adesão a aspectos boêmios, como o seu vício no álcool, no fumo e no jogo. Características que, alinhadas a tantas outras, são suficientes para subjugá-lo como uma pessoa atroz e que, de modo correto, está sendo preso pela polícia. Para os policiais, o próprio local onde João morava era pré-requisito para envolvê-lo nos assuntos do submundo do crime, o que era demonstrado pelas frequentes “batidas” nos estabelecimentos do local.

As amizades que o personagem de Lázaro Ramos possuía também figuravam como frequentes nas noites da Lapa. Prostitutas, homossexuais, viciados, entre tantos outros, também são rótulos instituídos pelas autoridades para levar a crer na negatividade do caráter da Madame Satã. A família que construiu e para a qual cedeu sua casa para moradia era composta por pessoas que representavam essas características do “submundo” do Rio de Janeiro, para eles, João se assemelhava a um Deus, ao patriarca da família, aquele que tudo pode e para quem tudo se deve. 

O personagem também fazia parte da lógica das classes que até hoje se mostra presente na sociedade brasileira. Negro, pobre, homossexual, sem religião, qualquer uma dessas características já seria suficiente para pô-lo em uma situação de preconceito social, ainda mais unindo-as a uma pessoa só. Apesar de existir alguns poucos momentos onde esses aspectos são denunciados na tela, o diretor não foca o filme no preconceito sofrido pelo personagem, mas sim no psicológico e na superação diante desses fatos, momentos que só acontecem quando há a interação entre ele e os de classe social mais elevada.

Ainda em relação às classes sociais, é importante frisar a relação de dominante e dominado que o personagem principal exercia. Quando no trabalho, local onde servia aos mais ricos, exercia claramente a figura de dominado, algo reconhecido através dos abusos que sofria e do pagamento que não recebia. Em contrapartida, exercia a figura de dominante no seu lar, onde agia como cafetão dos seus amigos que, por deverem favores a ele, pagavam uma quantia graças aos seus trabalhos sexuais. 

Para defender-se dos abusos sofridos e da vida que tinha que seguir por não ser considerado um artista dos palcos (o que não o faz até os minutos finais do filme), João se utiliza de golpes de capoeira quando em perigo, o que lhe conferiu oportunidades de emprego de segurança em casas noturnas da Lapa. Além da defesa física, o protagonista também o faz psicologicamente a fim de expurgar os problemas que lhe aparecem. A sua frieza perante seus amigos e amantes caracteriza uma defesa sentimental que se justifica a partir do sofrimento frequente vivido.

Apesar de sofrer diferenciação social graças às características citadas acima, não a aceitava facilmente. João se sentia na obrigação de mostrar aos demais o porquê de todos serem iguais, independente de cor, classe ou gênero. Queria ser aceito em qualquer local da cidade do Rio de Janeiro como um cliente normal, que pagaria por sua conta e teria o direito, por isso, de frequentá-lo ainda que o local não tivesse gente da sua “estirpe”. Assim, o personagem pode ser entendido como o defensor da sua classe, alguém que viveu aquela realidade e que luta por alguma melhoria para seu povo, ainda que seja relativa à imagem que este representa para os demais.

Com relação à linguagem utilizada pelo personagem, observa-se a utilização recorrente da coloquialidade, algo justificado pelo seu analfabetismo e pela sua posição social diante do local onde vivia. O sexo por muitas vezes era tratado sem pudores, exemplificando a popularização desses termos em decorrência da profissão que exercia. No entanto, a adaptação da linguagem acontecia quando em diálogo com alguém mais instruído ou com quem tentava seduzir, nessas cenas, o vocabulário se apresentava de modo polido, com palavras rebuscadas e repletas de lirismo.

Por fim, é importante salientar que João Francisco dos Santos, a Madame Satã, figura como uma versão brasileira do clássico personagem que luta pelo “sonho americano”. Aquele ao qual, tenta alcançá-lo com todas as forças, de todos os modos, escapando dos infortúnios, saindo dos problemas e enfrentando dificuldades, mas nunca desistindo daquilo que o faz viver: o sonho de ser artista.
 Texto realizado para a disciplina de Cinema Brasileiro do curso de Jornalismo da UFC 


Logo abaixo você pode conferir o filme na íntegra que está disponível pelo youtube. 
Boa sessão :)


Referências 

Cinema Clássico. <http://cinemaclassico.com/index.php?option=com_content&view=article&id= 1646:madame-sata&catid=45:filmes&Itemid=54>. Acesso em: 15 jun. 2014.

IlhaGrande.Org. <http://www.ilhagrande.org/Madame-Sata>. Acesso em: 15 jun. 2014.

MADAME Satã. Direção: Karim Aïnouz. Roteiro: Karim Aïnouz et al. Rio de Janeiro: VideoFilmes, 2001. 1 DVD (100 min.).  


 

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