O álbum "Chico Buarque" de 1978 é, obviamente, uma das melhores produções do maior compositor brasileiro, com sucessos que até hoje são considerados hinos como "Cálice", "Apesar de Você" e "O Meu Amor", a faixa escolhida para a análise de hoje é "Tanto Mar", composta pelo próprio cantor em duas versões, a faixa faz parte do rol das músicas revolucionárias de Chico e, além do cunho histórico, ela consegue conquistar pelo ritmo extremamente envolvente.
"Tanto Mar" foi composta no final da década de 1970 e relata através de quatro estrofes a vontade do eu-lírico de estar presente na tão conhecida "Revolução dos Cravos (1974)" que derrubou, com um golpe de Estado, o regime ditatorial Salazarista que reinava há 41 anos em Portugal, acabando assim com a censura e com a Polícia Política (órgão perseguidor dos opositores do regime). A música possui duas versões, onde a primeira foi censurada pela ditadura militar brasileira, e a segunda foi escrita quatro anos depois para o cd em questão e retorna à revolução de forma saudosista.
~ Primeira Versão ~
Sei que estás em festa, pá
Fico contente
E enquanto estou ausente
Guarda um cravo para mim.
Eu queria estar na festa, pá
Com a tua gente
E colher pessoalmente
Uma flor no teu jardim.
As duas primeiras estrofes claramente citam a revolução (festa) e demonstram a felicidade do eu-lírico com ela; apesar de estar ausente, ele gostaria que o ouvinte guardasse um cravo da revolução para dá-lo de presente ou que fosse possível colher uma linda flor que brotara no jardim da "revolução". É interessante o porquê do nome "Revolução dos Cravos", segundo alguns dos vários textos que tive acesso: pela manhã, uma florista levava produtos para decorar a inauguração de um hotel, quando foi surpreendida por um soldado revolucionário que colocou um de seus cravos na ponta da espingarda, ação que levou todos os outros a fazerem o mesmo. Outro fato importante na letra é a presença do "pá" que é usado em Portugal como uma corruptela (deformação) da palavra "rapaz", como o "mah" é para os cearenses.
Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei, também, que é preciso, pá
Navegar, navegar.
A terceira estrofe fala da distância entre o eu-lírico e o português ouvinte que tornou possível o novo regime político; e com uma jogada genial, Chico cita uma das grandes frases imortalizadas por Fernando Pessoa (Navegar é preciso, viver não é preciso) e proferida em 70 a.C por Pompeu, um navegador romano, que, por falta de aparatos tecnológicos e pelo frequentes ataques corsários, tinha que escolher entre salvar a cidade romana da crise de abastecimento ou manter-se confortável na Sicília.
Lá faz primavera, pá
Cá estou doente
Manda urgentemente
Algum cheirinho de alecrim
O último verso mostra a diferença entre Portugal e Brasil perante à ditadura. O "Lá" refere-se à Portugal e a sua recente "primavera", o "Cá" ao Brasil, onde o eu-lírico está doente, rodeado pela censura e pela ditadura que ainda imperam, e para que a sua doença passe, é preciso, e rápido, de um cheiro de alecrim (o orvalho do mar, segundo os romanos) que com seus poderes medicinais o ajudará a se curar do mal.
~ Segunda Versão ~
Foi bonita a festa, pá
Fiquei contente
Ainda guardo renitente
Um velho cravo para mim.
Já murcharam tua festa, pá
Mas certamente
Esqueceram uma semente
N' algum canto de jardim.
Os dois primeiros versos da segunda versão se remetem claramente à primeira. O "renitente" expressa a sua insistência em manter o velho cravo dado na versão de 1974. O passado agora foi empregado com força e o PREC (Processo de Revolução Em Curso) foi suprimido em 1976 através de um golpe militar que visava impedir a "ameaça vermelha", o que na letra é descrito pelo primeiro verso da segunda estrofe. Apesar do fim da revolução, Chico demonstra ainda acreditar na semente posta pelos "cravos".
Canta primavera, pá
Cá estou carente
Manda novamente
Algum cheirinho de alecrim
O último verso também conversa com a primeira versão, visto que o eu-lírico pede insistentemente que seja mandado algum cheirinho de alecrim para que a revolução no Brasil também seja semeada e que enfim, o nosso país possa ter a sua primavera.
"Tanto Mar" é, felizmente, mais uma música que lutou contra a censura do tão horrível regime militar. Com sua referência à Revolução dos Cravos de 1974, a letra consegue marcar seu nome na história com elementos portugueses e com a genialidade do grande mestre Chico Buarque. E que venham tantos e tantos mares de sabedoria com o maior compositor nacional.
Fontes: