quinta-feira, 23 de maio de 2013

Música: Carta de Amor de Oásis de Bethânia (2012)


"Oásis de Bethânia" é o 50° álbum da cantora baiana Maria Bethânia, com composições de Chico Buarque, Lenine e Djavan, o cd converge para a penúltima faixa, "Carta de Amor", escrita pela própria cantora e por Paulo César Pinheiro. Nas palavras da própria Abelha-rainha: "A música é uma carta de amor à mim mesma, eu me escrevendo para me livrar de demônios, angústias, dores, mágoas". Ainda em entrevista, a intérprete afirma que a música "Calúnia", composta por Mário Pinto e Paulo Soledade, e eternizada na voz de Dalva de Oliveira, seria um bom prólogo para esta canção.
Calúnia (Mário Pinto e Paulo Soledade)
"Quiseste ofuscar minha fama e até jogar-me na lama só porque eu vivo a brilhar. Sim, mostraste ser invejoso, viraste até mentiroso só para caluniar.Deixa a calúnia de lado se de fato és poeta, deixa a calúnia de lado que ela a mim não afeta. tu me ofendes, tu serás o ofendido, pois quem com o ferro fere, com ferro será ferido." 

De fato, "Carta de Amor" expande o sentido de "Calúnia", comecemos a identificar os elementos da primeira a partir das duas primeiras estrofes:

                                                                            ~ 1 ~

"Não mexe comigo que eu não ando só
Eu não ando só, que eu não ando só
Não mexe não!

Eu tenho Zumbi, Besouro, o chefe dos tupis,
Sou tupinambá, tenho os erês, caboclo boiadeiro,
Mãos de cura, morubixabas, cocares, arco-íris,
Zarabatanas, curare, flechas e altares
À velocidade da luz, no escuro da mata escura, o breu, o silêncio, a espera.
Eu tenho Jesus, Maria e José, todos os pajés em minha companhia,
O Menino Deus brinca e dorme nos meus sonhos, o poeta me contou."


Na primeira parte da música, Bethânia, em tom imperativo, ameaça seus males para que não cheguem perto, pois ela está protegida por vários seres, inanimados, lendas e até deuses. E muito bem protegida, diga-se de passagem:

Zumbi
Zumbi foi o último líder de resistência negra no Quilombo dos Palmares, o maior do período colonial; a data de sua morte foi adotada como dia da consciência negra.

Erês
Manuel Henrique Pereira, o Besouro Mangangá, foi o maior símbolo da capoeira baiana, segundo a lenda, seu corpo era fechado, balas e punhais não podiam feri-lo. A relação entre besouro e “chefe dos tupis”, creio que seja estilística, visto que a palavra tupi significa besouro em português. 

Os Erês são espíritos que trabalham em sua grande maioria na linha das almas. No processo evolutivo, a maior parte desencarnou ainda criança e optou pela continuidade na linha evolutiva mantendo as mesmas características.
Caboclo Boiadeiro

O Caboclo Boiadeiro faz parte de uma das mais importantes linhas da Umbanda, que é composta por homens que na vida trabalharam com gado e depois de desencarnados, em vez de laçar e guiar seu rebanho, são espíritos mais endurecidos, obsessores.

Morubixaba é o termo em tupi que designa o chefe a tribo, o cacique. 

O curare é um veneno extremamente forte presente nas flechas nos indígenas.



                                                                          ~ 2 ~

"Não misturo, não me dobro.
A rainha do mar anda de mãos dadas comigo,
Me ensina o baile das ondas e canta, canta, canta pra mim.
É do ouro de Oxum que é feita a armadura que guarda meu corpo,
Garante meu sangue, minha garganta.

O veneno do mal não acha passagem

E em meu coração Maria acende sua luz e me aponta o Caminho.

Me sumo no vento, cavalgo no raio de Iansã, giro o mundo, viro, reviro.
Tô no recôncavo, tô em Fez.
Voo entre as estrelas, brinco de ser uma, traço o cruzeiro do sul com a tocha da fogueira de João menino, rezo com as Três Marias, vou além, me recolho no esplendor das nebulosas, descanso nos vales, montanhas, durmo na forja de Ogum, mergulho no calor da lava dos vulcões, corpo vivo de Xangô.

Não ando no breu, nem ando na treva
Não ando no breu, nem ando na treva
É por onde eu vou, que o santo me leva
É por onde eu vou, que o santo me leva"

Na segunda parte da música, o eu-lírico enaltece os nomes dos seus orixás, como a Rainha do Mar, Iemanjá; afirma que está sob proteção deles e que isso o impede de andar no breu e na treva; é aprendiz de Iemanjá protegido pelo ouro de Oxum; segue o caminho dito por Maria ao tocar seu coração; viaja no raio de Iansã como o vento que banha o Recôncavo Baiano e Fez no Marrocos; transforma-se em estrela; descansa em elementos naturais; dorme no trabalho de Ogum e mergulha no corpo de Xangô, orixá do fogo. Tais estrofes só demonstram a capacidade de quebrar a barreira do impossível que o eu-lírico adquire através de seus deuses.

Oxum
Iansã
Oxum é uma orixá do candomblé que veste dourado e reina sobre: a água doce dos rios, o amor, a beleza, a intimidade, a riqueza e a diplomacia.

Iansã é uma orixá guerreira por vocação, sabe ir a luta e defender o que é seu, a batalha do dia-a-dia é a sua felicidade. Indica a união de elementos contraditórios, pois nasce da água e do fogo, da tempestade, de um raio que corta o céu no meio e de uma chuva.

Fez é uma cidade localizada no centro-norte do Marrocos, onde a  universidade mais antiga do mundo está localizada.
Na cultura católica, Isabel estava grávida de São João Batista e combinou com Maria, sua prima, que ao ocorrer o parto, acenderia uma fogueira num monte para comunicar a boa nova.
As Três Marias é um nome popular dado a um asterismo de três estrelas que formam o cinturão da constelação de Orion, o caçador.

Ogum
Xangô

Ogum é o orixá ferreiro, o senhor do metais. Ele mesmo forjava suas ferramentas tanto para a caça, como para a agricultura e para a guerra.

Xangô é o orixá dos raios, trovões e do fogo, é viril e atrevido, castiga os mentirosos, os malfeitores e os ladrões.




                                                                            ~ 3 ~

"Medo não me alcança.
No deserto me acho, faço cobra morder o rabo, escorpião vira pirilampo.
Meus pés recebem bálsamos, unguentos suaves das mãos de Maria
Irmã de Marta e Lázaro, no Oásis de Bethânia.
Pensou que eu ando só, atente ao tempo. Não começa, nem termina, é nunca é sempre.
É tempo de reparar na balança de nobre cobre que o rei equilibra, fulmina o injusto, deixa nua a Justiça.

Eu não provo do teu fel, eu não piso no teu chão,
E pra onde você for, não leva o meu nome não
E pra onde você for, não leva o meu nome não"

Maria de Betânia, Marta e Cristo
Na terceira parte da canção, Bethânia fala do que ela mesma pode fazer, apesar de não estar só, ela também é um ser perigoso, pois é capaz de fazer os animais realizarem coisas improváveis e até impossíveis. Se equipara a Cristo e realiza um belíssimo jogo estilístico entre o nome do álbum de trabalho e a localização da morada de Maria (Betânia), Irmã de Marta e Lázaro. Para ela, o tempo é o momento para se reparar o grande erro da riqueza, onde a justiça inexiste e os ricos ferem os pobres.

Maria, irmã de Marta e Lázaro, ou Maria de Betânia é um personagem do Novo Testamento, foi ela que ungiu com óleo os pés de Jesus Cristo seis dias antes da páscoa.


                                                                             ~ 4 ~

Onde vai valente?
Você secou, seus olhos insones secaram, não veem brotar a relva que cresce livre e verde longe da tua cegueira.
Seus ouvidos se fecharam à qualquer música, qualquer som, nem o bem, nem o mal, pensam em ti, ninguém te escolhe.

Você pisa na terra mas não sente, apenas pisa.

Apenas vaga sobre o planeta, e já nem ouve as teclas do teu piano.

Você está tão mirrado que nem o diabo te ambiciona, não tem alma.
Você é o oco, do oco, do oco, do sem fim do mundo.

O que é teu já tá guardado.
Não sou eu que vou lhe dar,
Não sou eu que vou lhe dar,
Não sou eu que vou lhe dar.


Na quarta parte da música, o eu-lírico ataca seu ouvinte ao dizer que este é incapaz de ver, de ouvir e de sentir, pois a sua alma não existe mais, está tão murcho, tão pobre, tão definhado que nem o diabo o deseja. No estribilho, a ameaça continua, dando a entender que os deuses protetores farão o ouvinte pagar pelos seus atos.
                                                                                                  ~ 5 ~

Eu posso engolir você, só pra cuspir depois.
Minha fome é matéria que você não alcança.
Desde o leite do peito de minha mãe, até o sem fim dos versos, versos, versos, que brotam do poeta em toda poesia sob a luz da lua que deita na palma da inspiração de Caymmi.
Se choro, quando choro, e minha lágrima cai, é pra regar o capim que alimenta a vida, chorando eu refaço as nascentes que você secou.

Se desejo, o meu desejo faz subir marés de sal e sortilégio.

Vivo de cara pra o vento na chuva, e quero me molhar.

O terço de Fátima e o cordão de Gandhi, cruzam o meu peito.
Sou como a haste fina, que qualquer brisa verga, mas nenhuma espada corta.

Não mexe comigo, que eu não ando só
Eu não ando só, que eu não ando só
Não mexe comigo!


Na última parte da canção, Bethânia começa atacando seu ouvinte, mas logo foca em se reafirmar novamente. Ela diz que sua fome é impossível de ser alcançada pelos seus males, suas mágoas, desde o alimento maternal de Dona Canô, sua mãe falecida esse ano, até a infinidade de versos compostos pelo poeta que há em si mesma, tudo isso abaixo, claro, da luz da lua que personificadamente deita na inspiração de Dorival Caymmi, seu mestre e, compositor de músicas que comungavam com a cultura baiana. Os últimos versos são os meus preferidos e estão tão claros que seria repetitivo analisá-los. 

Dorival Caymmi foi um cantor, compositor, violinista, pintor e ator brasileiro. Compôs sobre os costumes, os hábitos e as tradições do povo baiano com influência da música negra.



"Carta de Amor" é o grito de fé de uma mulher, de um ser que roga para que o mal, as tristezas, os devaneios e os próprios demônios se mantenham distantes. O texto, maravilhoso por sinal, é repleto de elementos da cultura baiana, indígena, da religião católica e do candomblé, fato que me faz admitir que Maria Bethânia é uma escritora de mão-cheia. Infelizmente, ela não usa esse dom tão singular frequentemente para suas composições, o que a torna, como ela própria se julga, uma cantora popular. Que fique registrado meu apelo para que a Abelha-rainha continue nos deliciando com produções como esta, magnífica em poesia e extraordinária em sentimento.

Fontes:

Nenhum comentário:

Postar um comentário